O governo surfa na competência do Banco Central que apedreja
Autoridades alvejam a instituição que permite à economia ter desempenho compatível com o quadro econômico global favorável, e com as reformas realizadas nos últimos anos.
O estado da economia global, em 2023, é consequência de dois desenvolvimentos principais, frutos das ações de autoridades fiscais e monetárias executadas durante a pandemia.
O primeiro deles está relacionado aos programas de complementação de renda e apoio às famílias disparado por governos de economias centrais e em desenvolvimento. Estes programas, tendo sido superdimensionados, atingiram magnitude entre 10 e 15% do PIB, no espaço de 2-3 anos; geraram muita inflação – de preços e salários - e criaram enormes excedentes de poupança financeira que tem sido utilizada pelas famílias para sustentar seu consumo. O ritmo de crescimento do consumo das famílias permanece forte desde 2021 em praticamente todas as economias ocidentais, como consequência destes programas e da força do mercado de trabalho. As taxas de desemprego registram os níveis mais baixos em anos – ou décadas, em alguns países – e a massa de salários é impulsionada pelo aumento da ocupação, e pela inflação de salários superior à das cestas de consumo.
O segundo desenvolvimento é o ajuste monetário implementado pelos bancos centrais de países emergentes, a partir de 2021, e de países centrais, a partir de 2022, em reação à subida da inflação, e como correção a suas próprias políticas monetárias, que permaneceram excessivamente frouxas durante o período da pandemia. Como reflexo deste ajuste, a inflação tem moderado – especialmente a de bens, que sente, também, a normalização das cadeias de suprimento globais e o deslocamento da demanda em direção a serviços. A atividade econômica mostra alguma moderação, em especial, nos setores mais cíclicos, mas o quadro da economia global não aponta para recessão em 2023, o que tem contribuído para sustentar os preços de commodites.
Este contexto global explica boa parte do bom desempenho da economia brasileira neste primeiro semestre de 2023. Alguns outros fatores específicos à situação do Brasil complementam a explicação, a começar pela enorme contribuição positiva do PIB agrícola, que em 2023 deve crescer 13%. A oposição do Congresso – em especial, da Câmara dos Deputados, tem evitado, por ora, o avanço de algumas das pautas mais deletérias do governo, como a mudança na Lei das estatais, que pioraria significativamente a governança das mesmas, e a revogação completa do marco do saneamento. É provável, ainda, que as reformas realizadas ao longo do período 2016-2022, em especial, as da previdência e trabalhista; o marco do saneamento, que permitiu dezenas de concessões deste serviço à iniciativa privada nos poucos anos em que vigorou de forma plena (2021 e 2022), a privatização da Eletrobrás, entre outras - possam ter elevado nossa capacidade de crescimento, uma hipótese que já aventávamos em setembro de 2022, neste artigo.
Um quarto fator ainda se destaca, nesse grupo de argumentos. Refiro-me aos efeitos da Lei da independência do Banco Central, um avanço também aprovado no quadriênio anterior.
Nestes últimos seis meses, a liderança do governo não diminuiu, nem por um só instante, a retórica contrária a política monetária praticada pelo Banco Central. O país não estaria crescendo o “suficiente” pela “teimosia” do Banco Central em manter os juros “excessivamente elevados”. O BC estaria “sabotando” a política econômica do governo, e impondo uma “recessão” à sociedade, e por aí vai.
Em primeiro lugar, essa retórica espelha, principalmente, não a discordância do governo com a política do BC – que obviamente existe, mas, sim, a dificuldade de sua liderança em aceitar que haja algumas pouquíssimas instituições que não estejam, pelo menos ainda, sob controle direto da chefia do executivo. E não deixa de ser irônico que exatamente uma dessas instituições esteja contribuindo notavelmente para que a economia brasileira venha obtendo desempenho consistente com o quadro econômico global que elaboramos acima, e que possa estar capitalizando, pelo menos até aqui, os efeitos positivos das reformas implementadas no passado recente.
Qual seria o mecanismo desta operacionalização? O Banco Central, quando pratica política monetária correta – ou seja, capaz de induzir a aderência da inflação à sua meta - permite o funcionamento normal da economia, o que inclui a operação do sistema de preços relativos, e a evidenciação das vantagens e desvantagens comparativas setoriais do país. No presente caso, a política monetária correta que o Banco Central do Brasil vem praticando tem permitido a convergência das expectativas de inflação em direção à meta; tem contribuído para conduzir a moeda a um patamar mais compatível com sua capacidade de crescimento e com seus termos de troca, que são, no momento, favoráveis; e não parece estar precipitando a economia numa recessão, o que seria o caso, se os juros reais estivessem assim tão mal calibrados.
Inversamente, a política monetária mal conduzida leva à desorganização da economia e do sistema de preços relativos, através de mecanismos que, tipicamente, passam por depreciação cambial e por desancoragem de expectativas de inflação. Todavia, os efeitos “benéficos” da política monetária mal conduzida (estamos aqui falando de juros mais baixos do que o recomendável), podem, no curto prazo, impulsionar a economia temporariamente para além de suas possibilidades; criar bolhas de preços de ativos, e aumentar a popularidade de governos – tudo isto, sob taxas de inflação não demasiadamente altas. Esta rapidez explica o fascínio e a obsessão de governos populistas com o “controle” do Banco Central – o juro é uma ferramenta de ação relativamente rápida, especialmente quando comparado a outras opções de política econômica. Porém, como bem ilustrou Milton Friedman, a inflação opera de forma semelhante ao álcool. Seus efeitos iniciais são inebriantes, e seu caráter destrutivo aparece ao longo do tempo, em prazos mais longos.
Graças, também, à existência de um Banco Central sério e independente, o Brasil poderá viver em breve um ciclo de relaxamento monetário, de forma organizada e não disruptiva, como qualquer outra economia emergente que esteja relativamente em ordem, e que tenha posicionado os juros em patamar restritivo como resposta à expansão da inflação e da atividade econômica entre 2021 e 2023. Outros exemplos de economias nesta situação são México e Chile. No caso brasileiro, a convergência da inflação à meta foi postergada pelos ruídos provocados pelo próprio governo, mas a melhora na qualidade da inflação e a convergência das projeções de inflação à meta no horizonte relevante de política monetária sugerem haver espaço para um ajuste superior a 400 pontos na taxa básica, como também permitiriam ao BC iniciar o processo de queda de juros a um ritmo mais significativo. A perspectiva de juros médios mais baixos, à frente, num contexto econômico relativamente organizado, já tem contribuído, por sinal, para melhorar os preços de ativos brasileiros.
Parece haver pouca dúvida de que a condução da política monetária teria sido significativamente diferente da observada, caso a diretoria do Banco Central não gozasse de mandato. A atual liderança do BC foi intransigente na defesa da manutenção do centro da meta de inflação, cuja elevação teria sido muito contraproducente. É provável, neste caso, que as condições de organização e crescimento do Brasil já fossem piores, a esta altura, embora não haja obviamente como validar essa conjectura.
A diretoria atual, no entanto, tem prazo de validade. A alguma altura, o vento externo pode virar, e a conta do crescimento acelerado das despesas reais do governo central patrocinada pela combinação da “PEC da Gastança” com o novo “arcabouço fiscal” – que projetamos ser de 8% em 2023, e 4% em 2024, pode começar a ser cobrada. Ela pode ser especialmente salgada, caso o BC de plantão opte por não seguir a boa prática monetária. O tempo dirá.
Complet, free of erros and neutro.
Perfeito! Brilhante análise.