O clube de “groupthink” dos economistas tupiniquins
Groupthink , ou pensamento de grupo, é o fenômeno que se caracteriza pela supremacia da lealdade ao grupo sobre a racionalidade do posicionamento individual. O indivíduo pode aderir ao groupthink por uma série de motivos, em geral ligados à temeridade de isolamento social e profissional que, em sua mente, poderia advir de sua desconformidade com os diagnósticos do grupo.
Tipicamente, os grupos em que esse comportamento pode ser identificado constituem-se de pessoas cuja confiança nas próprias crenças é elevada, o que as leva a considerarem a autoridade moral e/ou profissional representada pelo grupo como acima de qualquer questionamento. As consequências desse comportamento, em geral, envolvem a tomada sequencial de decisões equivocadas – quando o grupo em questão tem poder decisório – ou a crescente desconexão das análises dos membros do grupo com a realidade dos fatos – quando o grupo não tem poder decisório.
Uma boa ilustração recente para o primeiro caso consiste nos comitês de política monetária dos bancos centrais de países desenvolvidos. Para ficar só no caso mais conhecido, o FED, por exemplo, tomou decisões unânimes pela manutenção dos juros em zero até muito recentemente (janeiro de 2022), e caracterizava, em seus documentos de comunicação, até novembro de 2021, a maior inflação dos últimos 40 anos como “transitória”.
Suas projeções de inflação, resultado do trabalho de centenas de economistas formados por aquelas que são, em tese, as melhores escolas da profissão, revelaram-se um equívoco de proporções colossais. Pior, durante os anos de 2020 e 2021, as atas das reuniões do comitê mostram que nenhum de seus diretores questionou as projeções ou as decisões do comitê (1), que se revelaram , como se sabe hoje (e como diversos economistas de respeito – de fora do comitê – já falavam, à época) completamente inadequadas. A postura equivocada do FED e de outros bancos centrais com respeito à inflação, no passado recente e mesmo no presente, deve acarretar custos relevantes para a economia dos EUA e global, por décadas à frente.
O segundo caso pode ser ilustrado pelo comportamento de um grupo de economistas e analistas de mercado, no Brasil de hoje.
A realidade da economia do Brasil pós pandemia mostra que a mesma reagiu muito bem aos múltiplos choques dos últimos anos, muitos deles ainda em curso. No plano fiscal, a dívida bruta do governo geral deve terminar o ano de 2022 próxima a 77% do PIB , patamar próximo ao observado em 2019 (75%) . Essa resiliência fiscal se mostra muito superior à observada nos demais países. Segundo dados do FMI, nos EUA e no Reino Unido, no mesmo período , o aumento registrado na dívida foi em torno de 18pp do PIB. Chile, México, Colômbia e África do Sul registraram aumento de 9pp em sua dívida, na média.
O forte ajuste fiscal imprimido pelo governo durante a pandemia – único caso no mundo – constitui fator importante na explicação deste fenômeno. Com a manutenção nominal das despesas com pessoal, em 2021 e 2022, e da eficácia maior do que a esperada da reforma da previdência sobre os benefícios do INSS, o governo atual será o primeiro, desde 1988, que entregará, no último ano de seu quadriênio, um gasto primário, como proporção do PIB, menor do que o herdado de seu antecessor (2).
Este fato absolutamente notável é omitido ou menosprezado na maior parte das análises disponíveis, que consideram, ainda, estar a economia do Brasil em “frangalhos”, e ser “calamitosa” a situação fiscal. O foco integral da “análise” é direcionado , por algum motivo, ao orçamento de 2023, e no fato de que, provavelmente, parte da despesa com o programa de complementação de renda precisará ser acomodada acima do teto de gastos, a exemplo do ocorrido em 2022 – o que , por sinal, não impedirá que a despesa do governo registre queda real no quadriênio, como já destacado, e que haja superávit primário do setor público, pelo segundo ano consecutivo, em torno de 1% do PIB.
O país caminha pra crescer 3% ou mais em 2022, e a robustez do quadro sugere haver uma possibilidade concreta de que o crescimento mais forte possa ter relação com o conjunto de reformas e iniciativas implementadas desde 2016, dentre as quais podemos incluir entre as mais relevantes, do ponto de vista de aumento do PIB potencial: a reforma trabalhista; a reforma da previdência; os marcos regulatórios do gás, navegação e saneamento; a redução de diversos impostos, como o IPI e o ICMS; a independência do Banco Central; a lei de liberdade econômica; a desalavancagem do BNDEs e o fim de seus empréstimos subsidiados, iniciativas que abriram enorme espaço para o mercado de capitais; e a concessão de dezenas de aeroportos, terminais portuários, e milhares de quilômetros de rodovias e ferrovias à iniciativa privada.
Uma das características do groupthink é justamente a recusa do grupo em admitir a possibilidade de um erro de diagnóstico, por motivos por vezes ligados à vaidade ou posicionamento político de seus membros. No groupthink, procedimentos elementares do método científico, como o questionamento das hipóteses frente à observação de resultados não esperados, introduzido por Aristóteles há cerca de 2500 anos, são suprimidos pela superposição do interesse do grupo à análise objetiva.
Neste sentido, a possibilidade de parte do crescimento mais forte poder ser explicado pelos efeitos das reformas realizadas desde 2016, não é, assim, considerada como plausível. No clube do groupthink de pindorama, uma hipótese pétrea é a de que o país está condenado a crescer eternamente a 1%, a taxa que, hoje, seria compatível com o regime de gastos públicos crescentes praticado na época em que os membros do grupo fizeram parte do governo.
Isso explica a obsessão do clube com a peça orçamentária – um instrumento que, por sua própria natureza, recebe atualizações ao longo do ano , em função de reordenamento de gastos, e de surpresas na arrecadação de impostos. Um ex-integrante do governo FHC, membro sênior do clube do groupthink, revelou, recentemente , estar mesmo “horrorizado” com o PLOA 2023. Talvez motivado pela divulgação do mesmo documento, um membro mais “junior” do clube afirmou ser o grau de descontrole fiscal no atual governo comparável ao do governo … Dilma! (sim , o mesmo que jogou o Brasil na maior recessão de sua história, na esteira da qual a relação dívida / PIB do país subiu mais de 20pp).
Em outra manifestação de dissonância, outro membro titular do groupthink tupiniquim, ex-presidente do Banco Central na década de 1980, afirmou, recentemente , que o governo , “para dar a impressão que a inflação está em queda, controlou o preço dos combustíveis”. Essa afirmação é duplamente falsa. Em primeiro lugar , a inflação está de fato em queda, como atesta a evolução dos núcleos da inflação.
Em segundo lugar, o governo, a exemplo de vários outros em países desenvolvidos e emergentes, não controlou os preços dos combustíveis, mas, sim , cortou impostos federais e estaduais sobre os mesmos, o que permitiu queda dos preços finais praticados ao consumidor. Basta uma dose de bom senso para concluir que poucos momentos são mais adequados para reduzir alíquotas de ICMS , que chegavam ao pornográfico nível de 34% em alguns estados, do que este, em que a arrecadação de todos os impostos quebra sucessivos recordes. Já cortar impostos durante recessões, um estado da natureza que tem se revelado frequente no Brasil, é impossível.
Talvez nenhum comentário recente reflita uma desconexão maior com a realidade dos fatos do que o feito por um ex-ministro da fazenda, também dos anos 80: “ Se houver dominância fiscal, a inflação foge do controle e ninguém sabe o que aconteceria. No extremo, voltaria a hiperinflação, o que seria uma tragédia. Dificilmente se verá tanta irresponsabilidade junta quanto nesse governo.” Para além da falta de aderência à situação objetiva, a observação , vinda de um membro de um governo em que a inflação oscilou entre três e quatro dígitos ao ano, é, para dizer o mínimo, estarrecedora.
Os episódios de groupthink podem terminar de várias formas. No caso de grupos investidos de poder decisório , com a destituição do grupo ou de seus líderes , à medida em que a realidade avança e o grupo não se move de forma suficientemente ágil. Já clubes de groupthink de analistas que se revelam sistematicamente errados tendem, apenas, a dissolverem-se, ou, como também é comum , falar para uma plateia cada vez menor.
(1) Salvo um voto de Loretta Mester por queda menor de juros do que a decidida, em março de 2020.
(2) Este fato também ocorreu no governo Temer, que, no entanto, durou menos de um quadriênio.
Publicado originalmente na Infomoney, em 21 de setembro de 2022