Neste apagar das luzes de 2022, gostaria de compartilhar alguns comentários sobre dois livros marcantes que tive a oportunidade de ler ao longo do ano.
The Origins of Contemporary France (tradução de “Les origines de la France Contemporaine”), de Hippolyte Taine. O livro está disponível em Kindle por um preço módico, mas também existem disponiveis edições em papel, para quem preferir) .
Hippolyte Taine escreveu este majestoso trabalho ainda no século 19. Trata-se de uma descrição pormenorizada e uma análise minuciosa, sob um ângulo conservador, não apenas dos eventos passados na França no período revolucionário, mas, principalmente, a respeito da mente, da ideologia e dos métodos dos jacobinos. A análise e os fatos expostos por Taine tornam cristalina a natureza catastrófica e as consequências funestas, para a humanidade, destes eventos, que, em larga medida, graças à interpretação de narrativas marxistas posteriormente moldadas à exaustão, passaram à história como positivos. A mentalidade revolucionária gestada na França do século 18 pôde assim, naquele momento histórico, encontrar seu primeiro laboratório, para a partir dali ganhar o mundo e contribuir para ceifar centenas de milhões de vidas nos séculos seguintes, até os dias de hoje.
Escrevi um artigo em que identifico, no Brasil de hoje, elementos da França revolucionária, na forma descrita por Taine. Segue abaixo.
The Ideology of Democratism, de Emily Finley . Oxford University Press , 2022.
Invocar a “defesa da democracia” tornou-se corriqueiro, nos dias de hoje, em todo o mundo ocidental. Por exemplo , o presidente Biden declarou, em seu discurso em 1 de setembro deste ano, que os “republicanos ameaçam as fundações da república (dos EUA)”. Num livro compacto e muito lúcido, a cientista política Emily Finley analisa este discurso no contexto de uma ideologia que ela chama de “democratismo”. Segundo suas próprias palavras , trata-se de uma “imaginativa e idealista interpretação da soberania popular, que despreza as pessoas comuns e atribui aos ditos especialistas a operação do poder”. Nesta ótica , as expressões “democracia” e “o povo” tornam-se mero disfarce retórico para o desejo e as preferências políticas das elites. Como pode ser, por exemplo , que a censura imposta pelas mídias sociais (ou pelas autoridades) em nome do controle da “desinformação” e da “defesa da democracia” seja compatível com a defesa da liberdade de expressão ? A resposta é simples. Não é. O democratismo, segundo Finley, não passa de um disfarce para o autoritarismo, sendo mais palatável do que este por dar ao homem comum a ilusão de que este ainda detém pelo menos parte do poder decisório.
Finley identifica, nos EUA, uma longa linhagem de políticos democratistas, desde Thomas Jefferson – que acreditava serem seus conterrâneos da Virginia “atrasados”; desprezava as preferências das massas, e desconfiava de suas habilidades para governar, até Barack Obama, que com sua “Can’t wait initiative”, procurou governar subtraindo ao Congresso, “em nome do povo”, seu papel constitucional de representantes da população. O maior dos democratistas norte-americanos, no entanto, foi Woodrow Wilson, que via na independência dos poderes um “obstáculo” à “moderna democracia” que tinha em mente; censurou a imprensa, e proibiu, através dos atos de espionagem e sedição, de 1917-18, a manifestação contrária da população à participação dos EUA na 1ª Guerra Mundial, impondo à sociedade norte-americana, no período, uma cultura de histeria, medo, e delação.
Em artigo de outubro (link abaixo) analiso o contexto do Brasil contemporâneo sob esta ótica. Pelo fato de nossa tradição democrática ser muito menos profunda do que a dos EUA, nossos políticos democratistas nunca precisaram esconder com tanto cuidado suas tendências totalitárias, pois o autoritarismo explícito jamais deixou de fazer parte de nossa cultura política. Talvez, por este motivo, o voluntarismo de nossas cortes superiores seja, hoje, tão pouco disfarçado.
Boa leitura, e um ótimo 2023 a todos.
Excelente! Obrigado pelas recomendações, mestre! Sobre o democratismo, Oakeshott tem uma opinião semelhante ao dizer que Democracia pode tanto ser um meio de descentralização do poder como um mecanismo plebiscitário que apenas legitima o autoritarismo. No Brasil é claro para nós qual destas possibilidades está em prática.
Mais uma vez, obrigado pelo conteúdo.
Eu já tenho uma considerada um tanto controversa da retórica utilizada para “defender a democracia”, vou expor alguns elementos que inclusive já tratei em um artigo especifico:
1. Repetição e simplificação: Um dos preceitos da propaganda de Goebbels é a repetição de mensagens impactantes e simplificadas. Líderes despóticos podem reiterar ad nauseam que a democracia está sob ameaça e que suas ações repressivas são necessárias para protegê-la, mesmo que isso contrarie os princípios democráticos.
2. Apelo emocional: A técnica propagandística de Goebbels se fundamenta no apelo emocional, explorando sentimentos como temor, ira e ultraje para manipular a opinião pública. Líderes autoritários podem tirar proveito dessas emoções para justificar ações repressivas, alegando estar defendendo a democracia e a estabilidade.
3. Manipulação midiática: Ao dominar a narrativa na mídia, líderes autoritários podem selecionar e distorcer informações para criar uma imagem favorável de suas ações, mesmo que estas sejam repressivas e antidemocráticas. Isso pode envolver a censura de vozes discordantes e a disseminação de notícias falaciosas ou tendenciosas.
Ou seja, essa falácia retórica de ameaça da democracia nada mais é do que uma forma de estabelecer como verdade uma mentirosa narrativa de que a democracia (a liberdade na visão de alguns) está em risco.