França revolucionária e Brasil reacionário: quando os extremos se tocam
Métodos revolucionários do passado são atualizados e aplicados na atual campanha eleitoral
“Da mesma forma, todos os periódicos conservadores são suprimidos, silenciados ou forçados a mudarem sua orientação editorial. Quando alguém não tem a possibilidade de se manifestar, e se seu candidato não tem chances de se tornar seu representante, para que dar-se o trabalho de votar ? Em especial, quando as assembleias se tornam locais de violência e desordem, em que conservadores tornam-se sujeitos a insultos e expostos a perigos e ameaças se expressam suas opiniões, correndo risco de serem denunciados.”
O trecho acima contém elementos que se identificam em qualquer processo eleitoral de uma “democracia” dos nossos dias, mas na verdade é extraído do clássico “Origens da França Contemporânea”, escrito por Hyppolite Taine ainda no século XIX, e refere-se a uma das primeiras e mais icônicas eleições do período moderno - a que levou à constituição do corpo legislativo conhecido por Convenção, em 1792, no período que antecedeu o “terror” jacobino, o mais sangrento da Revolução Francesa. A Convenção instituiu a primeira república na França, tendo sido a condenação e posterior execução de Luís XVI algumas de suas primeiras decisões.
Os vícios e a desordem que caracterizaram as eleições na França neste período estão associados ao processo revolucionário. No antigo regime, a aristocracia detinha o poder, e a partir de 1789 esse foi alternadamente passando às mãos de facções que alegavam tomá-lo ou detê-lo “em nome do povo”. As eleições, tanto para a assembleia constituinte de 1790, mas principalmente para a Convenção, período em que o jacobinismo já se encontrava desenvolvido em sua forma mais radical, foram marcadas por perseguições, linchamentos, proibição de reuniões e todo tipo de intimidação a qualquer cidadão ou candidato que exibisse a menor associação, por mais indireta que fosse, à antiga aristocracia. A revolução objetivava extirpar qualquer resquício de poder e posses da antiga classe dominante, e praticou, como é sabido, inúmeras monstruosidades para lograr esta meta. “Aqueles cujas opiniões diferirem das nossas serão guilhotinados, e seu ouro e pertences passarão às nossas mãos”, nas palavras que tão bem encapsulam a ideologia e métodos dos jacobinos, conforme relatado pelo jornalista Mallet du Pan. Na França revolucionária, a igualdade de todos perante a lei, a liberdade e a soberania popular somente existiram nas palavras inscritas na declaração dos direitos do homem, e nas constituições de 1791 e 1793.
É curioso que uma parte dos métodos revolucionários do passado, devidamente atualizados, sejam aplicados numa situação aparentemente tão distinta à da França de 230 anos atrás, como a do Brasil contemporâneo. Na presente campanha eleitoral, temos observado inúmeras arbitrariedades inconsistentes com as leis estabelecidas, como a censura explícita de meios de comunicação, que, se já seria absurda em condições regulares, o é ainda mais num contexto de divulgação de fatos sobre cuja veracidade não paira qualquer dúvida, como no caso da associação entre o candidato Lula e o ditador da Nicarágua Daniel Ortega; e a censura das redes sociais, por motivo absolutamente fútil, de empresários aliados do Presidente da República, para ficar apenas nas ilegalidades mais grosseiras. As ações foram promovidas pelos tribunais superiores, que, no Brasil, parecem ter assumido funções semelhantes às do Comitê de Segurança Geral da França revolucionária, entidade que operava como polícia política do movimento e tinha por objetivo “proteger o regime de seus inimigos internos”.
Diferentemente do caso francês, no entanto, a situação no Brasil não é de revolução – muito pelo contrário. Como destacamos em artigo anterior, a eleição de Bolsonaro, em 2018, disparou forte reação dos grupos de interesse que há séculos orbitam, no Brasil, o poder central, e que tiveram suas rendas significativamente diminuídas no último quadriênio.
Neste sentido, a intimidação e a censura a apoiadores do presidente neste período eleitoral, em especial através dos tribunais superiores, que se transformaram no principal vetor de reação estamental à perspectiva de reeleição do líder do executivo, ocorrem não para tomar o poder, mas sim, para preservá-lo. A este esforço juntou-se a ideologia “democratista” da imprensa e de boa parte das elites, que, com muito cinismo, e no melhor estilo rosseauniano, escondem seus próprios interesses materiais e valores morais atrás de expressões vazias como “defesa da democracia”, “justiça social” e “aperfeiçoamento institucional”.
A censura digital que vem sendo imposta substitui, com vantagens, o papel desempenhado pela guilhotina no século XVIII. Além de evitar violência física extrema, é extremamente eficaz, num mundo crescentemente conectado, no silenciamento de vozes dissonantes. No entanto, a agressão por ela representada ao estado de direito, que poderia-se imaginar ser mais consolidado no Brasil contemporâneo do que na França revolucionária, é àquela muito semelhante, em sua essência.
Há outras semelhanças entre os dois casos. Para aumentar sua capacidade intimidatória, o jacobinismo contava com o apoio de gangues armadas, das quais os sans-cullotes integrantes da comuna de Paris foram os mais notórios. Nas assembléias locais, era frequente que deputados jacobinos tivessem um passado de banditismo comum. Num dos casos mais famosos, a assembléia constituinte interferiu no julgamento dos responsáveis pelos “Massacres de La Glacière”, episódio em que dezenas de pessoas foram linchadas e mortas em Avignon; os anistiou e permitiu seu retorno à vida pública como vitoriosos. A comparação com o Brasil de hoje, em que uma figura condenada por diversos crimes contra a administração pública, e deles não inocentado, tenha sido reabilitada politicamente, dispensa maior elaboração. Em outra correspondência, os deputados mais moderados e seus apoiadores eram, também, alcunhados de “fanáticos” pelos jacobinos – da mesma forma como hoje se procura etiquetar de “extrema direita” qualquer pessoa cuja orientação política não seja alinhada à ideologia esquerdista dos principais veículos de mídia, no Brasil ou em outras “democracias” modernas.
Não deixa de ser irônico que, num caso e em outro, a casca institucional e a organização dos poderes dos respectivos Estados seja essencialmente a mesma. A Constituição de 1988 “garante” dezenas de direitos aos cidadãos brasileiros, copiados, em grande parte, da declaração dos direitos do homem, inscrita nas constituições francesas a partir de 1791. Também nelas inspirada, nossa carta “garante”, em ”cláusula pétrea”, a independência dos poderes e a igualdade de todos perante a lei. Como se vê, em nenhum dos casos a legislação estabelecida impediu que a disputa de poder e a defesa de interesses de facções se sobrepusesse ao estado de direito. Igualmente, em nenhum dos casos, o regime político passou perto de ser qualquer coisa que representasse, nem mesmo remotamente, a soberania do povo sobre seu governo, no que consiste o significado da palavra “democracia”.
Jobim, uma visão realista da história da sociedade moderna. Deveríamos aprender com o passado mas a discussão deixou de ser razoável. Parabéns pelo texto !
Perfeito, Jobim!
Uma aula de história e, ao mesmo tempo, uma crítica contundente às arbitrariedades que vem sendo praticadas pelo STF.