Democratismo à brasileira
Nossas elites, a exemplo de suas contrapartes norte-americanas, compartilham de uma ideologia que instrumentaliza o sentido de democracia para impor suas vontades e valores à população
Invocar a “defesa da democracia” no Brasil tornou-se corriqueiro , nos últimos anos. A expressão está em toda parte, nos jornais, em discursos de políticos, em “manifestos” produzidos quase semanalmente por grupos que alardeam a iminência de um grande perigo à ordem democrática, como um golpe de estado à moda dos anos 60. Mídias sociais censuram a liberdade de expressão, também, “em defesa da democracia”. A expressão foi tão banalizada que perdeu completamente o sentido original, que deveria remeter, etimologicamente, a um risco à soberania do povo sobre seu governo.
A deterioração do significado da expressão, no Brasil, é muito semelhante à observada, hoje, nos EUA, onde o Presidente Biden declarou, recentemente, que os republicanos “ameaçam as fundações de nossa república”. Em seu excelente recém lançado livro “The Ideology of Democratism” (Oxford University Press, 2022), a cientista política Emily Finley caracteriza essa forma de discurso como parte da ideologia que ela batiza de “democratismo”. De acordo com Finley, o democratismo consiste em uma interpretação particular da soberania popular, que menospreza a vontade das pessoas comuns e atribui às elites e aos ditos “especialistas” a exclusividade de expressão da vontade da maioria e da operação do poder. Nesse contexto, a própria palavra “democracia” perde seu sentido original e torna-se um disfarce retórico para o interesse das elites.
Segundo Finley, que foca sua análise nos EUA, o fenômeno é suficientemente elaborado e sistemático para ser explicado apenas pelo simples cinismo de alguns políticos poderosos, que a autora chama de “democratistas”. Finley traça a origem da ideologia a Jean Jacques Rosseau, que elaborou o conceito de “vontade geral”. O conceito refletiria o desejo coletivo não no sentido da vontade da maioria, mas, sim, em sua forma idealizada por um “legislador”, que coincidiria, segundo Rosseau, com o desejo que deveria ter uma população “suficientemente informada”. De acordo com Rosseau, a virtude e a verdadeira liberdade estariam na submissão do desejo individual à “vontade geral”, e aqueles indivíduos que a ela não se sujeitassem deveriam “ser forçados a se libertarem”.
Finley identifica, nos EUA, uma longa linhagem de políticos democratistas, desde Thomas Jefferson – que acreditava serem seus conterrâneos da Virginia “atrasados”; desprezava as preferências das massas, e desconfiava de suas habilidades para governar, até Barack Obama, que com sua “Can’t wait initiative”, procurou governar subtraindo ao Congresso, “em nome do povo”, seu papel constitucional de representantes da população. O maior dos democratistas norte-americanos, no entanto, foi Woodrow Wilson, que via na independência dos poderes um “obstáculo” à “moderna democracia” que tinha em mente; censurou a imprensa, e proibiu, através dos atos de espionagem e sedição, de 1917-18, a manifestação contrária da população à participação dos EUA na 1ª Guerra Mundial, impondo à sociedade norte-americana, no período, uma cultura de histeria, medo, e delação.
Em larga medida, o democratismo é uma forma de disfarce do simples autoritarismo. Reveste-o de uma roupagem mais palatável e o permite dar às massas a ilusão de que estas ainda detém ao menos parte do poder.
No Brasil, a história é mais simples. Com tradição institucional e democrática muito menos profunda que os EUA, nossos políticos não precisaram de disfarces para atravessar o período do século XX em que o autoritarismo voltou a ganhar corpo, em escala mundial, como forma de governo. Artur Bernardes governou sob estado de sítio praticamente contínuo, e exilava seus adversários políticos em campos de concentração no Amapá, ou na Ilha da Trindade. Getúlio Vargas, entre outros atos ditatoriais, fechou o Congresso, outorgou uma constituição, prendeu jornalistas e mandou metralhar redações de jornal.
Nos EUA, um importante instrumento de subtração do poder popular foi o crescimento desmesurado do estado administrativo – agências reguladoras comandadas por burocratas não eleitos que, a partir de meados do século XX, passaram a usurpar o poder do Congresso, e contribuir para o aumento da importância relativa do Poder executivo. As agências tiveram especial papel no aumento da projeção da influência dos EUA no plano global, projeto patrocinado por diversos presidentes, republicanos e democratas, muitas vezes à revelia do Congresso.
Já no Brasil os objetivos e ambições dos governantes sempre foram mais mundanos. Com breves interstícios, o papel do poder legislativo e dos governos regionais, no Brasil, foi, em geral, pequeno. O poder de fato sempre foi exercido pelo governo central e pelo estamento burocrático, a camada de funcionários, contratadores e beneficiários de recursos públicos que, na definição de Raymundo Faoro, desde os tempos coloniais orbita o poder e usa de sua proximidade para auferir vantagens para si.
Desde a chegada de Vargas ao poder, em 1930, a relação simbiótica entre estamento burocrático e governo central operou de modo mais ou menos estável, tanto em períodos de autoritarismo explícito, como no Estado Novo e no período militar, como nas fases de relativa normalidade democrática. O aparelho estatal e as rendas do estamento cresceram; a participação da população no processo político foi mantida sempre em níveis muito baixos, mesmo nos períodos de normalidade, principalmente pela inexistência do voto distrital para a Câmara dos Deputados.
O sistema hospedeiro / parasita parecia em relativo equilíbrio, ainda que caminhasse para o esgotamento, em função do inchaço do estado, até que uma recessão brutal, fruto da combinação dos excessos de uma política econômica desastrosa, e de um gigantesco esquema de corrupção, envolvendo setores inteiros da economia privada e membros do governo, levasse à interrupção do ciclo e à eleição, pela primeira vez em décadas, de um presidente conservador e, mais importante, anti-establishment.
A reação do sistema à eleição de Bolsonaro consistiu numa feroz combinação de pressão estamental e democratismo. O desaparelhamento das empresas estatais , a redução das verbas de publicidade para empresas de mídia, a desalavancagem do BNDEs e o fim de seus empréstimos subsidiados (neste caso, desde o governo Temer) desmamaram setores importantes do estamento. A fraca governança institucional do Brasil, que inclui a desconexão entre o Congresso e os eleitores; o foro privilegiado para a elite política, que a torna refém do STF, e a forma de indicação dos ministros desta corte caíram como uma luva para que a mesma se tornasse o principal vetor do estamento para praticar oposição sistemática ao governo, sabotar suas políticas e perseguir politicamente seus aliados. Nesse quadro, o congresso, ocupado exclusivamente do interesse individual de seus membros, encontra-se a uma distância tão grande dos eleitores que dificilmente poderia vir a equilibrar o conflito desigual entre executivo e judiciário, mesmo se o instituto do foro privilegiado estivesse ausente.
Em outra frente de reação, a natureza democratista das elites e da imprensa revelou-se de forma cristalina ao longo dos últimos anos. Pouco importa o fato comprovado de que a taxa de crescimento do desmatamento da Amazônia tenha registrado seu recorde no governo FHC* - a versão que é transmitida pela imprensa e que consta nos manifestos pela “defesa da democracia” é outra. Para os democratistas brasileiros, é lícito lançar mão de qualquer narrativa falsa ou distorcida para combater o “atraso maior” representado pelo atual governo, e pregar sua substituição por outro que busque o “fortalecimento institucional , a estabilidade econômica e a justiça social”, segundo um recente abaixo assinado. Rosseau ficaria orgulhoso de tamanha perspicácia e sagacidade na definição da “vontade geral” por nossos iluministas, especialmente considerando-se que se trata de um possível novo governo Lula, na esteira de cujas práticas o estado de direito no Brasil terminou completamente esgarçado.
O democratismo de nossas elites contemporâneas e o modelo de sua reação a um governante eleito por dezenas de milhões de votos, pouco difere, em sua essência, da observada nos EUA, onde a ex-candidata democrata à presidência Hillary Clinton referiu-se aos eleitores de Donald Trump como “deplorables”. Há, no entanto, duas importantes diferenças. Como já destacamos, a fortaleza institucional dos EUA e seu histórico livre de autoritarismo pleno sempre exigiu, pelo menos até recentemente, disfarces engenhosos para que seus líderes ou atores relevantes com tendências autoritárias pudessem operar à luz do dia. No Brasil, a camuflagem nunca foi de fato necessária, pois o autoritarismo explícito jamais deixou de fazer parte de nossa cultura política, a despeito da aparente normalidade das últimas décadas. Talvez por isso o voluntarismo do poder judiciário seja, hoje, tão pouco disfarçado. Outra diferença importante diz respeito à complementariedade entre democratismo e reação estamental, na panela de pressão do Brasil de hoje. Embora o elemento ideológico tenha sua relevância, a história mostra que boa parte de nossas elites e da imprensa são, antes de iluministas, ou de qualquer outro atributo, rent seekers de primeira grandeza.
Pedro Jobim é PhD em economia pela Universidade de Chicago
*https://revistaoeste.com/politica/fernando-henrique-recordista-de-desmatamento-na-amazonia/
Impecável! Este texto tem que chegar a maior quantidade possível de pessoas.
Muito bom, Jobim! Excelente como sempre!