A sucuri aperta o abraço
Fundo de desenvolvimento regional anexado à reforma tributária aprofunda o modelo de extração de rendas da sociedade em direção a estamentos regionais, instituído pela Carta de 1988
Na última semana, o senado aprovou a emenda constitucional da reforma tributária, que unifica os cinco impostos indiretos —ISS, ICMS, PIS/Cofins e IPI— em um imposto compartilhado entre os municípios, estados e a União, além de um imposto seletivo incidente sobre itens cuja elasticidade-preço de demanda é relativamente baixa , como bebidas e tabaco.
O novo imposto divide-se em dois: a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), direcionado à União, e o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), compartilhado entre os municípios e os estados. Como o fato gerador, a base de tributação e os regimes tributários serão os mesmos, eles funcionarão como um único imposto, cuja alíquota estimada será em torno de 27,5%, o que o tornará o maior do mundo, em sua categoria.
Os defensores da presente reforma argumentam que o novo sistema representa um avanço, pois substitui um emaranhado de impostos cumulativos, em que empresas pagam impostos sobre tributos já pagos por seus fornecedores, nem sempre sendo possível abater da base de cálculo ou transformar em crédito tributário os tributos recolhidos nestas circunstâncias. O novo sistema eliminaria estas distorções e levaria a ganhos de produtividade capazes de elevar a taxa de crescimento do PIB potencial, alem de contribuir para reduzir o enorme contencioso tributário do país, estimado em cerca de 75% do PIB*.
Não se discute a ineficiência do sistema tributário atual, bem como a necessidade de reformá-lo. No entanto, as ressalvas em geral feitas ao sistema prestes a ser aprovado não vão muito além de enumerar as múltiplas exceções ao regime principal que ficaram previstas, o que torna a alíquota cheia mais alta, para os poucos setores que a ela estarão submetidos. A lista de setores para além daqueles mais óbvios a serem contemplados com uma alíquota menor ou um regime especial, como saúde , educação e transporte urbano, cresceu enormemente durante a tramitação do projeto, e contempla atividades tão diversas como bares e restaurantes, parques de diversão e hotelaria, servicos financeiros, SATs de times de futebol, saneamento, concessão de rodovias e aviação, serviços profissionais de médicos, advogados e contadores, e muitos outros.
Um aspecto central da questão, relativamente pouco discutido nas análises disponíveis, é o custo imposto à União (contribuinte) como contrapartida para a aprovação da reforma.
No sistema atual, os estados têm ampla autonomia sobre a gestão do ICMS, cuja alíquota pode ser reduzida ou ampliada, dentro de certos limites, conforme os mesmos queiram atrair ou inibir determinada atividade econômica em suas jurisdições. Muitos chamam, pejorativamente, este legítimo mecanismo federativo de “guerra fiscal”, em face da disputa que o mesmo induz entre os estados pela atração de empreendimentos.
No novo sistema, os estados (e municípios) perderão toda sua autonomia fiscal. Estados só poderão definir a alíquota geral do IBS dos produtos consumidos em seu território, não sendo permitido haver qualquer diferenciação por setores - o que inviabiliza por completo sua utilização como instrumento de política fiscal ou econômica.
Para compensar os incentivos concedidos pelos estados, nos últimos anos, a reforma aprovada instituiu o fundo de compensação de incentivos fiscais e financeiros, que será constituído por recursos da União, a serem transferidos aos estados, no período de 2025 até 2032. O valor total a ser transferido em 8 anos chegará a R$ 160 bilhões, em valores de 2023.
Até aí, poder-se-ia argumentar, vá lá - estaríamos falando de uma transferência média de 0,2% do PIB ao ano para os estados, temporária, direcionada a honrar compromissos previamente assumidos. A partir daí, os ganhos de produtividade advindos da reforma e alardeados por seus entusiastas deveriam ser suficientes, presumivelmente, para mais do que compensar a extinção da autonomia fiscal dos estados, tornando, a princípio, desnecessários mecanismos adicionais de subsídios regionais.
Mas o texto aprovado no senado foi muito além. Instituiu o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), que também será constituído por recursos da União, e cujos valores aportados serão crescentes, começando em 2029 com R$ 8bn, e chegando a R$ 60bn (a valores de 2023) a partir de 2043, ou 0,6% do PIB.
Setenta por cento do FDR será distribuído aos estados de acordo com a mesma regra que distribui os recursos do FPE - Fundo de Participação dos Estados - que direciona 21,5% da arrecadação da união com o IR e o IPI aos estados. A distribuição do FPE segue uma fórmula que contempla a distribuição de seus recursos de forma desproporcional, sendo os estados do Norte e Nordeste muito privilegiados nessa partilha - em especial, os estados mais pobres e pouco populosos dessas regiões. Em 2022, o FPE distribuiu 78% de seus R$ 180 bn a Estados das regiões Norte e Nordeste.
É verdade que o sistema de federalismo fiscal atual gera distorções. Afinal, quando um estado oferece , por exemplo , redução de ICMS a uma montadora para que ela se instale no estado, a empresa se apropria integralmente deste benefício - pois emite a NF de venda dos seus automóveis pela alíquota cheia do ICMS. No entanto, a natureza destes acordos é competitiva e envolve trade-offs. O governador precisa avaliar o tempo de isenção do benefício, e ponderar, entre outros aspectos , os ganhos econômicos advindos dos empregos gerados pela empresa com o custo associado à abdicação de receita. Além disso, na situação presente, não há recursos da união - isto é, do contribuinte - envolvidos.
A constituição do fundo de desenvolvimento regional segue uma lógica completamente diversa. Ao criar um mecanismo de transferência de recursos do contribuinte - adicional aos já existentes - a determinados estados, a emenda aprovada pelo senado escancara a intenção do legislativo em intensificar e mesmo perpetuar a máquina de transferência de recursos dos estados do Sul, Sudeste e Centro Oeste - em direção ao Norte e Nordeste - que foi instalada no Brasil pela Constituição de 1988. A carta magna criou o FPE e o FPM; os valores mínimos de gastos federais com saúde e educação - que implicam em mais transferências, uma vez que a natureza destes gastos é marcadamente regional - além de vários outros mecanismos que incentivam o crescimento dos gastos públicos, associados à enorme lista de “direitos” que a carta “garantiu” à população.
Os recursos do FDR - que, a partir de 2043, representarão uma transferência constitucional adicional aos estados de cerca de 30% do valor atual do FPE - poderão ser utilizados pelos estados como estes bem queiram. Não há trade-offs, no sentido de que não há que se ponderar a relação custo / benefício entre a queda de receita e os ganhos econômicos associados à vinda de empresas para o estado. São recursos que, literalmente, do ponto de vista das elites governantes e - na definição de Raymundo Faoro - do estamento burocrático de cada estado - caem do céu, e podem ser alocados da forma que maximizem os interesses destes grupos. Mas o mecanismo existirá para sempre? Sim, para sempre. Mas então estes estados “precisarão” destas transferências para sempre ? Nunca estarão no mesmo nível de desenvolvimento do restante do país, não podendo, assim, prescindir destes recursos? Isto não vem ao caso. A lógica de apropriação e transferência de recursos no Brasil não está relacionada à “necessidade” ou a qualquer argumento de eficiência econômica, mas a um mecanismo puro de extração de rendas de grupos menos organizados e proporcionalmente menos politicamente representados em direção aos demais.
Objetivamente, o fundo de compensações fiscais (que expira em 2032) equacionaria os incentivos já assumidos, e a partir daí os estados poderiam andar com as próprias pernas. Ocorre que a reforma, sem o jabuti do FDR, simplesmente não seria aprovada. Estados do Sul, Sudeste e Centro Oeste ficarão sem instrumentos para política e gestão fiscal ? Os governadores destes estados não gostaram? Problema deles. Os estados do Norte e Nordeste terão mais recursos da viúva, e essa é a única lógica que importa. Não por acaso, o fato de esta reforma não ter avançado durante o quadriênio anterior deveu-se, em larga medida, à presença de um ministro da fazenda que respeitava os recursos dos contribuintes, tendo se recusado, enquanto permaneceu no cargo, a apoiar qualquer sangria de recursos da União ao estilo das que foram determinadas pela emenda constitucional próxima a ser promulgada.
O aumento da voracidade do estamento regional sobre os recursos públicos também não é obra do acaso. Somando 16 de um total de 27 estados, que concentram apenas 21% do PIB e 36% da população do país, as regiões Norte e Nordeste controlam a maioria dos assentos no Senado, o que foi suficiente para garantir a introdução de outros absurdos na presente reforma, como o Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Estado do Amazonas, também a ser constituído com recursos da União, no contexto da preservação dos incentivos tributários à Zona Franca de Manaus. O texto aprovado institui a cobrança de um imposto (CIDE) a que todo produto vendido no país, que tenha similar “produzido” na ZFM será submetido. Não, você não leu errado. É exatamente isto. Se você comprar uma bicicleta ou moto, por exemplo, que não sejam montadas na ZFM, recolherá este imposto ao adquirir o produto. O objetivo alegado do imposto é manter a “competitividade” do pólo industrial de Manaus.
Diga-se, ainda, que os estados não estarão completamente impedidos de criarem novos impostos. O texto aprovado permite a criação de um novo imposto estadual sobre produtos primários ou semielaborados - na prática, sobre a agricultura, mineração e petróleo. Uma nova frente para ampliação da carga tributária.
A presente reforma aprofunda e consolida o “pacto federativo” que hoje governa o Brasil, cuja origem também se remete à Constituição de 1988. A governança funciona mais ou menos assim: O STF, agraciado pela carta magna com o direito de julgar a elite política, a tem sob seu controle, e hoje abusa do direito de desrespeitar qualquer lei - começando pela constituição - e fazer o que quiser - desde que não prenda nenhum senador, o que parece ser a única circunstância que eventualmente poderia levar ao impeachment de um de seus ministros. O Senado, controlado por 16 estados que representam 20% do PIB do país - graças, também, à Constituição de 1988, que criou os estados de Roraima, Amapá e Tocantins - transformou-se numa máquina de transferência de recursos do centro-sul em direção ao norte e nordeste, em especial, aos rincões mais atrasados e menos populosos destas regiões. Já o poder executivo expande os gastos públicos ao limite, e, para viabilizar essa prática, extorque todos os impostos que forem possíveis das pessoas físicas e das empresas, comprando o apoio de deputados a esta derrama através de verbas orçamentárias e/ou cargos públicos para seus apadrinhados.
Ufa! Está sentindo o abraço da sucuri? Aperte o cinto, mas respire fundo e guarde um pouco de fôlego, pois a emenda da reforma tributária aprovada no senado prevê o envio, em 90 dias, da reforma do imposto de renda. Na mira, IR sobre dividendos, fim do JCP e outras medidas que os pagadores de impostos certamente vão adorar.
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Disclaimer : o mercado financeiro trabalha com o curto prazo. Enquanto o país estiver crescendo e a taxa de câmbio estiver bem comportada, aspectos negativos estruturais de longo prazo como os destacados nesse texto tendem a ter baixo impacto nos ativos financeiros.
*Contencioso Tributário no Brasil , Relatório INSPER 2020
Pedro,
excelente artigo. Infelizmente, no Brasil de hoje, somos uma Caquistocracia
Gosto muito dos seus artigos, parabéns !!