A política monetária nos EUA se encontra em território restritivo?
Pedro Jobim e Roberto Prado*
Entre 2020 e 2021, o governo dos EUA concedeu um total de US$ 3.1 trilhões - cerca de 7% do PIB do período - em ajuda emergencial e complementação de renda às famílias, em meio à pandemia do COVID 19. No mesmo período, o FED expandiu seu balanço em cerca de US$ 4 trilhões, entre compra de títulos do próprio tesouro, e de ativos ligados a hipotecas. Como qualquer estudante de graduação em economia deveria saber, tamanho voluntarismo não poderia deixar de provocar enorme inflação, que, de fato, começou a subir já no início do ano de 2021.
Até o final daquele ano, contudo, o FED insistiria na narrativa de que a mesma seria “temporária” – embora seus núcleos já exibissem variação de 5% YoY - e seus diretores manteriam, assim, por votações unânimes, a taxa dos fed funds em zero durante todo o período da pandemia. Em março de 2022, passaram a elevá-la, até que atingisse o patamar atual de 4,75%.
Ao longo do primeiro semestre de 2022, o FED promoveu um aperto considerável das condições financeiras, trazendo a taxa real de juros ex-ante (a taxa de juros dos títulos indexados à inflação - TIPS) do patamar de -1% em que se encontrava para cerca de +1,5%. O movimento nos juros provocou forte queda nas bolsas no mundo inteiro, além de fortalecer o USD contra praticamente todas as demais moedas.
A partir dos últimos meses de 2022, o FED, confiante na narrativa de desaceleração da atividade econômica e de desinflação de bens que tomou conta dos mercados, optou por desacelerar o ritmo de altas de juros. Contribuiu para a decisão o entendimento, por parte da autoridade monetária, de que os juros reais (ex-ante) já estariam em patamar restritivo.
De fato, o nível destes juros reais está, hoje, semelhante ao vigente, por exemplo, na entrada da recessão de 2008, ainda que abaixo daquele que levou à recessão de 2001 (gráfico 1).
No entanto, a medida de juros ex-ante não é a única. Os juros reais ex post, medidos, por exemplo, pela subtração da inflação acumulada em 12 meses do rendimento dos títulos de dez anos do tesouro, são também uma medida relevante de aperto monetário. Esta métrica, como podemos observar no gráfico 1, aponta para juros reais ainda bastante negativos, próximos a -2%.
A renda nominal dos trabalhadores e a receita nominal das empresas seguem de perto a inflação corrente – e não a inflação esperada. Como a inflação corrente tem sido e permanece muito elevada – mais do que o patamar dos juros nominais – o comprometimento da renda disponível dos trabalhadores e também do caixa das empresas com o serviço de suas dívidas seguem, historicamente, muito baixos. Do lado das famílias, este efeito faz com que a fração de renda disponível para que as mesmas prossigam demandando, neste período pós pandemia, especialmente serviços, se mantenha elevada. O mercado de trabalho extremamente apertado – a taxa de desemprego de 3,4% é a menor em décadas – compõe, também, este quadro de pleno aquecimento da atividade econômica, em especial, do consumo de serviços.
Do lado das empresas, uma taxa nominal de juros baixa frente a receitas indexadas à inflação corrente faz com que os lucros permaneçam confortáveis, mantendo o retorno sobre o capital investido superior a seu custo. Como resultado, as mesmas seguem, de forma agregada, ampliando o tamanho de suas operações e contratando mão de obra, o que retroalimenta o ciclo de negócios.
Note-se, no gráfico 1, que ambas as séries de juros reais andaram praticamente juntas durante todo o período em que coexistem – não havia títulos indexados à inflação, nos EUA, antes de 1997. A inflação baixa e controlada do período e a consequente compatibilidade desta com a inflação esperada é o fator que explica a semelhança das séries, até 2020. A divergência entre ambas, no período recente, é explicada pelo fato de que a inflação corrente é muito superior à inflação implícita no rendimento dos títulos indexados à variação dos preços.
Grafico 1
É interessante, ainda, observar que – exceção feita à recessão de 1980 – para a qual contribuiu a desorganização econômica induzida, entre outros fatores, pela postura de política monetária demasiadamente relaxada praticada pelo FED, na segunda metade da década de 1970, a eclosão de todas as outras foi precedida de prática de juros reais ex-post de pelo menos 2%.
Estaria a política monetária dos EUA em patamar restritivo, e suficiente, assim, para induzir uma recessão? O FED deveria voltar a acelerar o ritmo de elevações de juros, ou seria mais recomendável prosseguir no ritmo atual? É claro que as respostas a estas perguntas não são fáceis, e possivelmente nem mesmo existam, de maneira objetiva e inquestionável. Preferimos, a este respeito, apenas lançar algumas observações, de modo a subsidiar a reflexão do leitor sobre o assunto.
Em primeiro lugar, existe uma ampla literatura econômica que comprova não ser o mercado de títulos públicos – nele incluindo as TIPS - um bom preditor da inflação. Destacamos, neste contexto, o trabalho de Michael D. Bauer and Erin McCarthy1, que demonstram ser o erro médio de previsão de inflação associado às TIPS da mesma ordem de magnitude das pesquisas junto a economistas e consumidores, ou mesmo de uma constante, ou de uma regra que iguale a inflação prevista à passada.
Adicionalmente, no presente ciclo de política monetária, a quantidade de erros praticados pelo FED foi notória. Como já mencionado, o FED manteve a taxa básica em zero, de março de 2020 a fevereiro de 2022, por decisões unânimes. Ou seja, nenhum membro votante se opôs à manutenção da taxa neste patamar, mesmo nos meses finais de 2021, quando a variação do núcleo da inflação se aproximava de 5% ao ano, e já havia ampla evidência de que o fenômeno não era “temporário”, adjetivo com o qual o FED se referiu à inflação durante todo este período. Cechetti et alli, em recente e compreensiva análise2 de dezenas de episódios de desinflação em economias maduras, no período após 1950, concluem que a ausência de ação preventiva do FED ao longo de 2021 constituiu um “grave erro”. Outro equívoco evidente foi a forma com que a aceleração do ritmo de aperto para 75BP, em junho de 2022, motivada por uma abrupta elevação das expectativas de inflação, foi conduzida. O FED, preferindo não surpreender o mercado no dia da decisão, optou por comunicar a mesma ao agentes através de um jornalista, em face do “período de silêncio” em que os membros do comitê de política monetária já se encontravam.
Outro ponto relevante diz respeito à aparente obsessão do FED (e de outros bancos centrais) com o ritmo de ajuste de 25BP nos juros, mesmo em meio a um ambiente de inflação muito acima da desejável, em que elevações mais intensas de juros devessem ser tratadas com relativa naturalidade por todos os agentes econômicos.
Os dois ciclos de apertos de política monetária nos EUA anteriores ao atual – o primeiro, entre 2004 e 2006, e o segundo, entre 2015 e 2018, foram conduzidos, integralmente, ao ritmo de 25BP por reunião. Isto foi possível porque a inflação, nestes episódios, era baixa, tendo se situado sempre em torno da meta de 2%, ou mesmo abaixo dela. Em ciclos de aperto monetário anteriores a estes, incluindo os conduzidos durante as décadas de 1970 e 1980, quando a inflação era muito mais próxima dos valores observados atualmente do que aqueles vigentes no período compreendido entre meados dos anos 1990 e 2020, o FED alternou, repetidamente, em suas decisões, elevações de 25BP, 50, 75, e 100BP, além de valores menores e maiores do que estes, conforme o fluxo de dados de inflação e atividade econômica demandasse.
É importante, ainda, mencionar que mesmo a chamada taxa de juros real ex-ante neutra , o r* - o conceito teórico que divide o território da política monetária entre contracionista e expansionista, teria sofrido, segundo vários estudos, elevação entre 50 e 100BP no período pós pandemia. Alguns fatores que poderiam estar contribuindo para esta elevação são cíclicos, como o aumento do nível de endividamento dos governos; outros, estruturais, como o envelhecimento populacional e a fratura nas cadeias de suprimento global. O trabalho de Luzzeti3 é um bom guia para entender estes efeitos.
É fundamental, também, observar o que tem acontecido com o objeto da política monetária, a inflação. O gráfico 2 mostra a variação do deflator do núcleo das despesas de consumo (“Core PCE”), a medida preferida de inflação do FED. Desde fins de 2021, ela tem se mostrado relativamente estável, em torno de 5%, a despeito de todo o aperto monetário implementado. A inflação não dá mostras de ter sofrido qualquer descompressão relevante, desde que o ciclo de aperto monetário foi iniciado.
Encerramos nossas observações com um comentário final a respeito da dependência intrínseca das projeções de modelos econométricos em relação ao período de estimação. Cechetti et alli, no trabalho já mencionado, mostram que um modelo de pequeno porte de projeção de inflação e calibração de política monetária, semelhante ao utilizado pelo FED e por outros Bancos Centrais, gera resultados muito distintos para a projeção de inflação, nos EUA, à frente, no atual ciclo de aperto monetário, a depender do período em que os parâmetros são estimados. Utilizando-se, para a estimativa dos parâmetros, apenas o período de inflação baixa, que vai de meados dos anos 90 até 2020, o modelo projeta que a inflação (“Core PCE”) converge a 2% já em meados de 2024. Caso a janela inteira de dados desde 1950 seja utilizada na estimativa dos parâmetros – incluindo, portanto, na amostra, vários períodos de inflação elevada – a subida da taxa de juros a 5,5% em meados de 2023 – valor próximo ao atualmente apreçado nos mercados de juros futuros - resulta em inflação acima de 3,5% até o fim de 2025, patamar que provavelmente geraria, pelo longo período de incompatibilidade com a meta, desancoragem das expectativas de inflação.
Gráfico 2
*Economistas da Legacy Capital
1/ Michael D. Bauer and Erin McCarthy, “Can We Rely on Market-Based Inflation Forecasts?”, FRBSF Economic Letter, Sept 2015
2/ Stephen G. Cecchetti, Michael E. Feroli, Peter Hooper, Frederic S. Mishkin, and Kermit L. Schoenholtz, “Managing Disinflations”, mimeo, 2023
3/ Luzzeti, Matthew. Deutsche Bank US Economic Perspectives, February 2023 – “How positive r* are you?”
Obrigado por nos trazer o trabalho do Cechetti et alli.
muito bom! excelente bibliografia. obrigado